Hoje deu vontade de relembrar algumas reportagens que fiz na época do Imprensa Livre. Infelizmente, o jornal fechou as portas e perdemos os arquivos. Mas como tenho , ainda, algumas matérias, as que gostei muito e fazer vou publicar de vez em quando. Segue a primeira. Não sei se ele ainda está no mesmo local, se voltou para a família, mas foi uma lição no idos de dezembro de 2010.
José Martins de Oliveira, ou
simplesmente ‘Véio’, é uma figura carismática que vive no meio da mata e há
anos não vai para a civilização
Texto e Fotos
Mara
Cirino
Em
um lugar ermo, no meio da mata, onde é quase impossível chegar – só de veículo
Off Road com tração e uma boa parte de percurso é feita a pé – reside mais um
morador de São Sebastião. Por que isso é importante? Porque ele foi descoberto
durante o recenseamento populacional feito este ano pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE).
Seu
José Martins de Oliveira tem 59 anos e há pelo menos três não tem contato com a
civilização. Desconhece dia, data, não sabe quem é presidente do Brasil, prefeito
da cidade. Não lembra nem mesmo qual é a moeda corrente no país.
Essa
história mobilizou políticos e jornalistas na busca de saber quem é o homem que
vive como um eremita em São Sebastião.
Tudo isso começou, segundo o então supervisor do IBGE, Pedro
Felipe Ramos, quando olhou no Google Maps para identificar as alterações
existentes na sua área desde 2000.
“Percebi
uma clareira no meio da mata e vimos que tínhamos que ir ao local e saber se
havia algum morador para ser recenseado. E assim foi. Depois de identificar o
caminho, os recenseadores fizeram um longo percurso até chegar ao local.
Ali
descobriu o ‘Veio’, o Zé Baixinho, um capiau conversador e carismático que
nasceu e quer morrer na roça. Ele disse que nasceu na cidade de Tremedal, em
Pernambuco, mas em pesquisa pelo Google, o município situa-se na Bahia. Disse também que tinha 64
anos, mas seu documento mostra que nasceu em 1951 e tem 59 anos.
“Ah,
foi um conhecido que veio aqui e disse que eu tinha essa idade”, conta ele.
Aliás, datas estão meio que frescas em sua cabeça. Da esposa Eni Batista
Gonçalves, lembra que faleceu há 22 anos. “Era minha companheira, criou meus
quatro filhos. Fazia minha comida, cuidava da casa quando estava aqui”, relembra
e chora quando lembra que mais nenhum dos filhos está com ele e há três anos
não vê mais ninguém.
Fala
orgulhoso que, embora analfabeto, seus dois homens e duas mulheres iam para a
escola e são todos formados – tem enfermeira, professores e veterinários.
“Sempre fiz questão que estudassem. Colocava eles no lombo do cavalo e ia para
a cidade (bairro). Um deles tentou levá-lo para Belém do Pará, mas o ‘Véio’ não
quis abandonar sua roça. “Vou fazer o que lá. Aqui tenho tudo o que preciso”.
Rotina
No
mundo de tecnologia, ele não tem televisor, rádio, celular então, nem pensar.
Não distingue mais o mundo que vivemos.
Sua
rotina é acordar de madrugada, fazer seu café adoçado com cana de açúcar e ir
com o facão para o meio do mato na companhia da cadela Tandá. Sua fiel
escudeira é a cachorra Campina que fica tomando conta da casa e dá o sinal
quando ouve algum barulho estranho.
Se
a fome aperta, o jeito é comer banana, cana ou nabo que tem plantado na terra. Feijão,
só quando está no ponto de apanhar. Seu banho é no açude de água fria que tem o
sítio. Quando alguém sobe no sítio, ainda troca cacho de banana com algum outro
tipo de comida, como arroz, ou produtos que precisa.
Os
animais que tinha na área, segundo ele, foram furtados. “Estava na roça e me
levaram tudo, até a fiação da casa”, lamenta. Casa essa, que ele diz ter
construído sozinho, uma casa grande, com três quatros, sala, cozinha com fogão
de lenha. Mas ele não tem muita coisa. Só suas panelas e um lampião que
fabricou para iluminar a escuridão. Quando acaba o querosene e não tem ninguém
para levar, o jeito é ficar no escuro, ir dormir, rezar por um novo dia.
A
geladeira antiga, que comprou em um ano que não lembra mais, funciona como
armário, justamente pela falta de energia.
Pedido
Questionado
sobre o que gostaria de ganhar se tivesse de pedir algo, ele é rápido na
resposta. “Queria que tivesse luz aqui. Assim, poderia ter uma companheira. Que
dona vai querer morar aqui se não tem luz? Como posso receber alguém aqui se
não tenho ninguém nem pra fazer um cafezinho enquanto a gente proseia?”, questiona.
Esse
pedido foi bem analisado pelo vereador Paulo Henrique de Santana, o PH, que
acompanhou a visita. O parlamentar foi o representante da Câmara na reunião de
avaliação do recenseamento em
São Sebastião e foi aí que escutou a história de Zé Baixinho
e seu afastamento da civilização.
Aliás,
PH foi protagonista da história de Véio e seu javali, que ele chama de porco, e
quer trocar por uma égua. Tentou porque tentou que o vereador comprasse o
‘porco’, mas como não mexe com dinheiro, disse que quer ter um equino de novo,
mas tem de ser égua. Questionado sobre o motivo, disse que assim pode ter mais
animais. Mas como se só teria ela? “Ora, enxertando (inseminação) ela”,
responde rápido.
E
assim, ele vai continuar com sua vida até, quem sabe, um dia conseguir realizar
o sonho de ter a companhia de alguém, umas criações no terreno e sua égua para
poder andar e retornar à civilização.
Aventura
para chegar à casa de ‘Véio’
A
visita à casa de Veio, ou Zé Baixinho, foi uma aventura do início ao fim. O
acesso se dá pela Estrada da Limeira, no Alto do Jaraguá, na Costa Norte de São
Sebastião. Fomos em dois veículos Off Road, mas nem eles foram suficientes para
atravessar um certo ponto da estrada que, devido às chuvas está com muita lama.
O
jeito foi descer, equipado com bota típica de quem vai para a mata, repelente
no corpo e enfrentar os aclives e declives sem cair.
Na
comitiva, guardas-parque do Instituto Florestal – Núcleo do Parque Estadual da
Serra do Mar – São Sebastião, agentes da Defesa Civil, equipes de reportagem, o
vereador PH e seu assessor Helton Romano e o ex-supervisor do IBGE.
Foram
pelo menos 30 minutos de caminhada no meio da mata rodeada de plantas e frutas
selvagens até a chegada à casa. Um detalhe que chamou a atenção lá é o rabisco
de um calendário próximo ao fogão de lenha.
Perguntado
se assim marcava os dias, o Véio disse que não, que foi um amigo que deixou lá
registrado para saber o dia que esteve lá.
Depois
de mais de três horas entre sair da cidade, ir para o mato e retornar para a
civilização, o jeito foi voltar à realidade e retratar a história desse capiau
que mostrou até onde vai a capacidade do ser humano de se adaptar com o que
tem.